Surto de DTA

e-Book: Desvendando os mistérios da epidemiologia

Investigação de Surto Alimentar, Paulista/Pernambuco, 2001

A investigação do surto, que será detalhada neste estudo, permitirá analisar os fatores que contribuíram para sua ocorrência, as medidas de controle implementadas e as lições aprendidas para a prevenção de surtos semelhantes no futuro.


OBJETIVOS

Ao término deste exercício o estudante deve ser capaz de:

  • definir uma epidemia;

  • elaborar uma curva epidêmica;

  • calcular e comparar taxas de ataque para identificar possíveis veículos de transmissão;

  • listar as etapas de uma investigação de um surto.


Este trabalho utilizará como estudo de caso um surto de Infecções alimentares, que ocorreu em Paulista, Estado de Pernambuco, no Brasil, em outubro de 2001.

Capítulo 1: o evento

Era para ser um dia de celebração e solidariedade. A organização filantrópica Vozes pela Infância, localizada no bairro Jardim das Flores, em Recife, planejava um evento em homenagem ao Dia das Crianças. A instituição, conhecida por oferecer cursos profissionalizantes e assistência a crianças e adolescentes em comunidades carentes, havia preparado uma festa que prometia diversão, comida farta e um dia inesquecível para os participantes.

O local escolhido para o evento foi o Recanto Verde da Paz, um clube de campo situado no município de Paulista, a cerca de 40 km da capital. O objetivo era proporcionar um ambiente acolhedor e descontraído para os cerca de 650 convidados, a maioria crianças. A organização recebeu doações generosas de alimentos e insumos, permitindo a preparação de um almoço com marmitas compostas por arroz branco, uma mistura especial de frango temperado, batata palha e tomates frescos.

Para o preparo das refeições, os organizadores contrataram os serviços de Dona Clara, uma salgadeira conhecida na região. Embora recebesse remuneração pelo preparo de bolos e doces, ela concordou em ajudar voluntariamente na confecção das marmitas. Foram solicitadas 1.000 unidades, uma tarefa desafiadora considerando a infraestrutura limitada da residência de Dona Clara.


Capítulo 2: A Logística do Evento

A logística do evento começou dias antes. As doações chegaram em remessas:

  • 04 de outubro: 100 kg de arroz parboilizado;

  • 05 de outubro: caixas de tomate, alho, cebola, coentro, ervilhas, milho, creme de leite, maizena, margarina, batata palha e leite em pó;

  • 08 de outubro: 200 kg de frango congelado, entregues às 14h.

A cozinha improvisada na casa de Dona Clara, sem ventilação adequada ou água corrente, tornou-se um verdadeiro campo de batalha contra o tempo. O trabalho começou cedo no dia do evento, e as marmitas foram acondicionadas em recipientes de alumínio, expostas ao calor ambiente até o transporte.

Na manhã do dia 9 de outubro, 13 ônibus fretados saíram do ponto de encontro em Jardim das Flores rumo ao Recanto Verde da Paz, levando crianças e seus responsáveis. Durante o trajeto, foram servidos biscoitos recheados e achocolatados. No clube, a manhã transcorreu com brincadeiras e distribuição de salgadinhos industrializados, refrigerantes e água.


Capítulo 3: A Festa Vira Pesadelo

O almoço, programado para as 12h, enfrentou atrasos. A primeira remessa de marmitas foi servida entre 13h e 13h30, enquanto a segunda saiu às 14h. Após o almoço, as crianças se deliciaram com bolo de chocolate e doces variados. A festa parecia um sucesso até por volta das 16h, quando o caos começou.

Primeiro, uma criança apresentou náuseas. Em seguida, outros relataram cólicas intensas, vômitos e diarreia. “Parecia uma reação em cadeia”, contou um dos organizadores. O clube rapidamente transformou-se em um cenário de desespero, com crianças e adultos buscando socorro.

Os ônibus, que deveriam retornar às 17h, foram redirecionados ao hospital mais próximo. Muitos pacientes foram levados ao Instituto de Saúde da Infância, em Recife, enquanto outros seguiram para unidades de saúde nas proximidades, devido à superlotação.

Figura 2. Matérias de jornais locais registrando a situação clínica das crianças


Capítulo 4: O Alarme é Dado

A notícia de um possível surto alimentar logo chegou à Divisão de Vigilância Sanitária de Recife, cujos técnicos foram enviados ao local. Eles encontraram um cenário caótico: dezenas de pessoas passando mal, tumulto nos ônibus e equipes médicas sobrecarregadas.

No mesmo dia, as autoridades iniciaram a coleta de informações. Amostras de alimentos foram recolhidas, e entrevistas com organizadores e manipuladores de alimentos revelaram lacunas graves na segurança alimentar. As marmitas haviam sido armazenadas por horas em veículos sob o sol e manipuladas em condições precárias de higiene.

Uma investigação inicial indicou que cerca de 650 pessoas haviam participado do evento, sendo 410 menores de idade. Os registros médicos eram incompletos devido à sobrecarga nos serviços de saúde, dificultando a anamnese e o rastreamento dos casos.


Capítulo 5: A Busca pela Verdade

A gravidade do incidente no Recanto Verde da Paz ecoou além dos limites da Região Metropolitana de Recife, alcançando cobertura nacional. A imprensa divulgava várias versões sobre o ocorrido, algumas precipitadas e imprecisas, contribuindo para a confusão e expondo indevidamente pessoas envolvidas no evento. Em meio a essa turbulência, no dia 10 de outubro de 2001, a Coordenação de Vigilância Epidemiológica e Sanitária (COVEH) recebeu um pedido formal para apoiar a investigação das causas do surto alimentar que impactava centenas de pessoas.

A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), por meio do Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), enviou uma equipe de especialistas do Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada (EPI-SUS), acompanhados por técnicos da COVEH. A missão da equipe era clara, mas desafiadora: avaliar a extensão do surto, identificar o agente etiológico, determinar os fatores de risco envolvidos e, sobretudo, propor medidas concretas para prevenir episódios semelhantes no futuro.

O caso representava mais do que uma simples investigação: era uma oportunidade de reforçar a cooperação técnica entre os níveis municipal, estadual e federal. A equipe também visava restabelecer a confiança pública, minada pelas especulações infundadas que circulavam na mídia.


Capítulo 6: Ações Emergenciais e Coordenação da Resposta

À medida que o surto ganhava proporções preocupantes, as Secretarias Municipais de Saúde de Recife e Paulista, em colaboração com a Vigilância Epidemiológica e Sanitária do Estado de Pernambuco e o Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), implementaram uma série de medidas para conter o impacto do evento e esclarecer as causas. Em uma reunião realizada na Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) no dia 15 de outubro de 2001, foram definidas responsabilidades específicas entre os órgãos envolvidos:

  1. Paulista: Assumiria a Vigilância Sanitária devido à realização do evento em sua jurisdição.

  2. Recife: Ficaria responsável pela Vigilância Epidemiológica, dado que a maioria dos comensais residia na capital.

  3. SES-PE: Coordenaria a resposta integrada, dado o envolvimento de diferentes municípios e a necessidade de articulação entre Vigilância Sanitária e Epidemiológica.

  4. CENEPI: Ofereceria suporte técnico especializado para condução das investigações epidemiológicas.

Medidas de Controle e Prevenção Implementadas

  1. Busca ativa de casos: Equipes da Atenção Primária de Saúde realizaram visitas domiciliares e nas unidades de saúde, coletando 8 swabs retais de pacientes que apresentaram sintomas.

  2. Coleta de amostras: Ingredientes e alimentos processados servidos no evento foram recolhidos para análise laboratorial, incluindo amostras de frango, tomates e batata palha.

  3. Treinamento das equipes do Programa de Saúde da Família: Foi organizada uma capacitação emergencial para aplicação do inquérito coletivo do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica de Doenças Transmitidas por Alimentos (VEDTA).

  4. Estudo de coorte retrospectivo: Com base nos dados coletados, iniciou-se a análise dos fatores de risco, utilizando o software EPI-INFO, versão 6.04d, para tabulação e cálculos estatísticos.


A Investigação em Detalhes

O estudo de coorte retrospectivo foi escolhido como metodologia principal devido à possibilidade de comparar os grupos expostos a diferentes componentes das marmitas. A ficha do inquérito coletivo permitiu registrar informações detalhadas sobre os sintomas, alimentos consumidos e dados demográficos dos participantes.

A análise inicial sugeriu que o consumo de certos alimentos, como o frango temperado e os tomates, estava associado a um maior risco de adoecimento. Enquanto isso, a vigilância sanitária iniciou a inspeção dos locais de preparo e armazenamento dos alimentos, confirmando graves deficiências estruturais e de higiene. Paralelamente, o laboratório avançava nas análises microbiológicas para confirmar ou descartar os suspeitos etiológicos.


Com a análise em andamento e as ações de controle estabelecidas, o mistério começava a ser desvendado. Contudo, o sucesso da resposta dependeria da articulação contínua entre os órgãos envolvidos e da precisão das conclusões baseadas nos dados coletados. O próximo passo traria respostas definitivas e lições importantes para o futuro da vigilância em saúde.

Capítulo 7: Investigação

Diante desse cenário, iniciou-se a investigação epidemiológica do surto de gastroenterite em Paulista, com os seguintes objetivos:

  • caracterizar a entidade clínica,

  • identificar a etiologia e

  • determinar os fatores de risco para a doença, a fim de propor medidas preventivas e educativas.

Contextualizando o Local

  • Paulista e Recife em 2001: Paulista, localizado na Região Metropolitana do Recife, destacava-se como um município em crescimento, com forte urbanização, mas ainda enfrentando desafios de saneamento básico, infraestrutura e saúde pública. O evento ocorreu em um bairro periférico, refletindo as dificuldades estruturais que influenciaram as condições de preparo dos alimentos.

Localização dos municípios afetados

  • Clima na data: O mês de outubro é tipicamente quente e úmido em Pernambuco, com temperaturas médias acima de 30°C, condições que favorecem o crescimento bacteriano em alimentos mal acondicionados.

Dez passos da investigação

  1. A Detecção e a Notificação

  2. Confirmar os diagnósticos

  3. Confirmar a existência do surto

  4. Identificar e confirmar os casos

  5. Caracterizar o surto

  6. Considerar as contramedidas oportunas

  7. Desenvolver hipóteses

  8. Refinar a compreensão

  9. Implementar e avaliar as medidas de controle

  10. Comunicação de Risco

Com base na planilha de casos fornecida, os alunos devem aplicar os Dez Passos da Investigação Epidemiológica. Segue um roteiro detalhado com orientações para a execução de cada passo:

Instruções para Aplicação dos Dez Passos da Investigação

1. Detecção e Notificação

  • Identifique na planilha as informações sobre a data da refeição (DTREFEICAO) e o número de casos registrados.

  • Verifique os primeiros registros e compare as datas para determinar o momento inicial do surto.

  • Atividade: Relacione os registros ao sistema de vigilância e destaque a importância da notificação oportuna.

2. Confirmar os Diagnósticos

  • Examine as colunas CONDICAOCL, DOENTE, e AMOSTRA_FEZES para identificar o estado clínico dos pacientes e os diagnósticos laboratoriais realizados.

  • Atividade: Elabore uma tabela resumo dos sintomas e condições mais prevalentes, discutindo como esses dados suportam a confirmação do diagnóstico.

3. Confirmar a Existência do Surto

  • Utilize a variável DTREFEICAO para construir uma curva epidêmica.

  • Identifique padrões de distribuição temporal dos casos e compare com a frequência esperada de doenças similares na região.

  • Atividade: Crie a curva epidêmica e analise os resultados para confirmar a existência do surto.

4. Identificar e Confirmar os Casos

  • Localize os casos confirmados na coluna DOENTE (valor 1 para confirmados).

  • Agrupe os dados por faixa etária, sexo e local de atendimento (UBS, HOSPITAL).

  • Atividade: Apresente uma tabela de distribuição demográfica e discuta os grupos mais afetados.

5. Caracterizar o Surto

  • Descreva o surto no tempo, espaço e pessoa.

  • Identifique os alimentos consumidos usando as colunas ALIMENTO_... e determine os itens mais comuns entre os casos confirmados.

  • Atividade: Faça uma análise descritiva dos alimentos associados ao surto, priorizando os mais consumidos pelos doentes.

6. Considerar as Contramedidas Oportunas

  • Avalie as colunas que indicam hospitalização (HOSPITALIZ), tratamento com antibióticos (TRATAMENTO_ANTIBIOTICO) e outras ações.

  • Discuta as medidas de controle implementadas no período inicial.

  • Atividade: Liste as medidas adotadas e proponha outras contramedidas que poderiam ter sido aplicadas.

7. Desenvolver Hipóteses

  • Com base nos alimentos associados ao surto, sintomas e dados demográficos, elabore hipóteses sobre a possível fonte de contaminação.

  • Atividade: Justifique as hipóteses com base nos dados analisados.

8. Refinar a Compreensão

  • Realize testes estatísticos (como cálculo de taxas de ataque para os alimentos consumidos) para refinar as hipóteses.

  • Utilize os dados do consumo alimentar (ALIMENTO_...) e a presença de sintomas para calcular o risco relativo.

  • Atividade: Apresente os cálculos e discuta os alimentos de maior risco.

9. Implementar e Avaliar as Medidas de Controle

  • Analise as ações documentadas (ex.: hospitalização e tratamento) e avalie sua eficácia com base na redução de novos casos após a implementação.

  • Atividade: Relate o impacto das medidas adotadas e proponha melhorias.

10. Comunicação de Risco

  • Desenvolva um plano de comunicação para divulgar os achados do surto e orientar a população sobre medidas preventivas.

  • Atividade: Crie um esboço de nota informativa para a população, incluindo dados do surto e recomendações de prevenção.

VAMOS INICIAR ESTA JORNADA!

OLIVEIRA, Wanderson K. et al. Investigação de surto alimentar, Paulista/Pernambuco, 2001. Boletim Epidemiológico, ano 02, n. 01, 10 de abril de 2002. Disponível em: github.com/wandersonepidemiologista

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