2 Estudos descritivos
Análise de Estudos Descritivos
Na área de Epidemiologia, os estudos descritivos visam compreender e documentar a extensão e severidade dos problemas de saúde da população. Eles detalham como as doenças e outros problemas de saúde se distribuem, assim como os custos e impactos de intervenções.
Esses estudos são extremamente úteis para os profissionais de saúde, pois ajudam a entender a dimensão, os impactos e as tendências de doenças e problemas relacionados. Em alguns casos, esses estudos também exploram hipóteses iniciais sobre possíveis causas de doenças. Quando fazem isso, alguns os denominam “estudos exploratórios”.
Os estudos exploratórios são relevantes quando há conhecimento limitado sobre a ligação entre potenciais fatores de risco e o resultado final, que geralmente é um evento de saúde. Esses estudos fornecem informações iniciais, mas não definitivas, sobre a causa e o efeito. Em outras palavras, eles não avaliam completamente as hipóteses sobre fatores de risco, mas podem levantar hipóteses para serem testadas em estudos mais detalhados.
Apesar de suas limitações, os estudos exploratórios são frequentemente usados no planejamento de ações de saúde. Eles são relativamente rápidos, econômicos e, muitas vezes, utilizam dados já existentes. Em algumas situações, podem ser os mais indicados para responder a questões específicas, fornecendo resultados válidos.
Essas análises são fundamentais para descrever condições de saúde. Permitem que os administradores de saúde entendam as necessidades de saúde de áreas específicas ou grupos, como idosos e gestantes. Isso ajuda na identificação do número de casos graves, estimação de custos e reconhecimento de tendências. Além disso, eles fornecem informações sobre a morbidade e mortalidade em diferentes grupos, locais e períodos de tempo.
Estudo de caso
Vamos utilizar o material didáico traduzido no Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, pelo Professor Dr.Eliseu Alves Waldman com a colaboração da Dra. Chang C. S. Waldman, a partir do conteúdo ministrado no Summer Course de 1992, pelo Centers for Disease Control and Prevention CDC/EIS.
Uma doença epidêmica na Carolina do Sul
Objetivos
Ao final deste exercício o aluno deve ser capaz de :
utilizar os princípios da epidemiologia descritiva (tempo, lugar e pessoa) numa investigação de um determinado surto;
caracterizar os dados epidemiológicos da doença através de tabelas, diagramas e gráficos apropriados e estabelecer as hipóteses gerais relativas à etiologia;
descrever as relações dos caracteres epidemiológicos relativos ao espaço, tempo e atributos da pessoa com a patogênese e transmissão da doença.
PARTE I
Introdução
Durante anos, os médicos das áreas rurais do Sudeste dos Estados Unidos da América (EUA) notificaram a ocorrência de uma doença até então desconhecida. Dado que a notificação deste agravo era obrigatória somente em um dos estados da região, onde os serviços médicos eram limitados, as informações relativas à sua incidência eram irregulares.
Antecedentes
A doença em questão, embora de fácil diagnóstico em clínicas locais, ficou na época como de etiologia indeterminada. Sua patogênese, modo de transmissão, imunidade, fatores ambientais e repercussão social constituíram matéria de controvérsia, tendo sido elaboradas várias teorias quanto à natureza da doença.
Com o objetivo de determinar a amplitude e relevância da doença foi encaminhado um questionário a todos os médicos de oito Estados do Sudeste dos EUA. O impresso solicitava que os profissionais informassem o número de casos examinados nos últimos cinco anos. Apenas 25% deles responderam à solicitação, mas com essas novas informações o número de casos conhecidos elevou–se de 622 para 7.017, no período considerado.
No ano seguinte, um epidemiologista do Serviço de Saúde Pública dos EUA foi designado para investigar a epidemia. Após algumas observações preliminares, o mesmo iniciou uma investigação de campo para determinar a extensão e a natureza da doença.
Investigação
A pesquisa foi realizada em cinco municípios da Região Noroeste do Estado da Carolina do Sul, onde a doença se mostrava mais freqüente. A área da pesquisa incluiu 24 vilarejos, com população de 500 a 1.500 habitantes, que apresentavam grandes diferenças quanto ao saneamento; uns dispunham de suprimento de água de abastecimento, outros de sistema de esgoto, alguns de ambos os serviços e em outros tantos de nenhum deles. O inquérito se restringiu a um grupo étnico e incluía, primariamente, assalariados e suas famílias.
Em cada vilarejo foram realizadas duas visitas por semana, durante um ano, para cada família incluída na investigação, com o objetivo de detectar casos. Foram registrados os nomes, idade, sexo e estado civil de cada membro da família. A ocorrência da doença era determinada pelo exame clínico e história. Cabia aos responsáveis pelo estudo, profissionais experientes no diagnóstico da doença, o exame dos casos duvidosos.
Tabela 1- Casos da doença por mês de início dos sintomas, nos 24 vilarejos pesquisados durante um ano (população total 22.653 habitantes).
Tabela 2 - Incidência da doença por idade e sexo nos 24 vilarejos pesquisados durante um ano.
Tabela 3 - Incidência da doença entre as mulheres conforme o estado civil e idade.
Tabela 4 - Incidência da doença por ocupação, idade e sexo.
Tabela 5 - População e número de domicílios afetados pela doença durante o período de 9 meses em 7 vilarejos da Carolina do Sul.
Os investigadores analisaram a incidência da doença por nível socioeconômico (Tabela 6). Também realizaram avaliações das condições sanitárias. Cada vilarejo foi considerado como uma unidade, tendo sido analisadas as taxas referentes à qualidade das condições de higiene, suprimento de água e destino das excretas. A Figura 1 demonstra o diagrama da incidência da doença e sua dispersão, conforme as taxas de cobertura do saneamento básico nos 24 vilarejos.
Tabela 6 - Incidência da doença por nível socioeconômico nos vilarejos* pesquisados durante 1 ano.
Figura 1 - Relação da taxa de incidência de uma doença desconhecida e cobertura de saneamento básico de 24 vilarejos, Carolina do Sul
Dois anos mais tarde a segunda comissão concluiu:
A suposição de que a ingestão de milho, em boas condições ou estragado, seria a causa da doença não foi detectada por este estudo.
Provavelmente é uma doença infecciosa, por enquanto desconhecida, cuja disseminação se dá por transmissão pessoa a pessoa.
Um ano depois, a segunda comissão apresentou os seguintes dados no Encontro Anual da Associação Médica Americana:
No grupo cujos casos foram mais bem estudados, houve evidência de estreita associação com um caso identificado pré-existente em mais de 80% das vezes.
As visitas casa a casa, nas residências de mais de 5.000 pessoas que moravam em 6 focos endêmicos da doença, falharam em descobrir alguma relação entre a doença e algum elemento da dieta.
Nestas 6 vilas os novos casos originaram-se quase exclusivamente de uma casa onde estava morando um caso pré-existente, ou nas residências vizinhas, sugerindo que a doença se disseminou a partir de casos antigos.
PARTE II
Muitas pessoas diziam que um agente infeccioso era o responsável pela doença. Epidemiologistas realizaram estudos a respeito da sua possível transmissibilidade. A seguir apresentamos os resultados encontrados:
O pesquisador tirou sangue do braço de uma mulher enfraquecida e doente em seu primeiro ataque da doença, injetando pequena quantidade deste sangue, ainda quente, na pele do ombro esquerdo do seu assistente. O assistente, por sua vez, injetou na pele do pesquisador quantidade semelhante da mesma amostra de sangue. Durante 2 dias os braços destes “aventureiros” ficaram entumecidos. Isto foi tudo.
Mas o pesquisador era ávido por provas… A comissão governamental tinha dito que a doença se disseminava de forma semelhante à febre tifóide, através dos intestinos dos indivíduos afetados. No dia 26 de abril, sozinho no seu laboratório improvisado - instalado no lavatório de seu ônibus, retirou de seu bolso um pequeno frasco, colocando em seu interior uma mistura de farinha de trigo com uma amostra de fezes de uma mulher acometida da doença em estudo, engolindo, em seguida, pequena quantidade desta mistura. A seguir comentou “a descamação do exantema cutâneo pode ser também contagioso”. Assim, ele misturou farinha de trigo com descamação cutânea de dois outros pacientes, ingerindo certa quantidade desse pó.
Usando fezes, urina, vômitos e descamação de pele de pacientes, o pesquisador completou experimentos adicionais nele próprio e em voluntários, incluindo sua esposa e assistente. Nenhum deles adoeceu.
Estudos em instituições de saúde mental e orfanatos onde a doença se apresentava em número elevado, o pesquisador observou que nenhuma enfermeira ou outros trabalhadores, mesmo os serventes que residiam no local de trabalho, vieram a adoecer. O pesquisador convenceu-se de que não se tratava de doença infecciosa.
PARTE III
Para investigar a possibilidade da doença estar relacionada à dieta, os investigadores fizeram uma pesquisa em todos os residentes em sete vilas, comparando o consumo médio diário de vários ítens alimentares, desenvolvendo a seguir um estudo dos afetados e não afetados.
A Tabela 8 apresenta o padrão de consumo de quatro alimentos por estas famílias.
Tabela 8 - Padrão de consumo de vários alimentos e a presença de ausência da doença em famílias dos sete vilarejos.
PARTE IV
Conclusão
A doença em investigação era a pelagra, moléstia desconhecida nos Estados Unidos da América até 1907, embora mortes esporádicas tenham sido relatadas em 1889 e 1902. A primeira epidemia da pelagra ocorreu em Monte Vernon (Alabama) “Asylum for Negroes” em 1906, com 85 casos e 53 mortes. Embora a pelagra fosse considerada mais prevalente na Georgia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Alabama, Mississipi e Louisiana, estes Estados não participaram do registro nacional de mortalidade. No entanto, o número de mortes relatadas nos Estados envolvidos elevou- se de zero, em 1904, para 1015 em 1913.
O Dr. Joseph Goldberger foi solicitado pelo “Surgeon General” para investigar o problema da pelagra em março de 1914. Até aquele momento, as duas teorias explicativas disponíveis eram: 1) a Italiana, que defendia a hipótese de que a doença era causada por milho deteriorado; 2) e a Americana, que defendia a hipótese de que se tratava de uma doença infecciosa. Três observações feitas pelo Dr. Goldberger induziam a suspeita de que se tratava de uma doença nutricional.
Embora a doença fosse endêmica em asilos, profissionais e auxiliares que lá trabalhavam nunca adquiriram a doença.
A doença surgia basicamente em população pobre.
A doença era mais freqüente em áreas rurais.
Em junho de 1914, Goldberger publicou o seu primeiro relatório com dados obtidos do asilo de Milledgeville, na Georgia, informando que os serventes e profissionais do asilo não tiveram a pelagra. Observou, ainda, uma diferença significante na dieta e hábitos dos pacientes, se comparados com os sadios, especialmente no que se refere ao consumo de carne e leite.
Em 1915, Goldberger instituiu um programa de suplementação alimentar em dois orfanatos de Mississipi que haviam apresentado uma prevalência da pelagra de 47%. Como resultado, não ocorreu nenhum caso nos anos seguintes entre os 103
internados. Também em 1915, Goldberger visitou a Penitenciária Rankin no Estado do Mississipi, onde nenhum caso de pelagra havia sido relatado. Conseguiu induzir a pelagra, após 5 meses e meio, em 6 dos 11 funcionários, com o uso de uma dieta sem carne, leite ou vegetais frescos.
Em 1916 Goldberger iniciou pesquisas sobre a transmissão da pelagra. Usando o seu próprio corpo, o da sua esposa e de mais 12 voluntários, injetou sangue de pacientes com pelagra em pessoas sadias: ele também ingeriu uma mistura de fezes, urina, vômitos e descamação cutânea de pacientes com pelagra. Nem ele nem os outros indivíduos adquiriram a pelagra. No final de 1916, começou seu estudo em vilarejos da Carolina do Sul - inicialmente em 7 e posteriormente em 24 vilarejos.
De 1918 a 1926, Goldberger conduziu estudos para descobrir o fator de prevenção da pelagra. Inicialmente focalizou um aminoácido, o triptofano que demonstrou ter algum efeito na prevenção da pelagra. Descobriu que levedura seca tem alta atividade de prevenção da pelagra. O fator de prevenção da pelagra parece ser solúvel em água, resistente ao calor, possivelmente uma nova vitamina B.
Hipóteses econômicas a respeito do surgimento da pelagra nos Estados Unidos.
No início dos anos 1900, muitas famílias da zona rural da Região Sul do EUA migraram para pequenas vilas e tornaram-se dependentes de salários para viver. Durante o período de 1900-1913, os salários aumentaram em torno de 25%. Durante a depressão econômica de 1906 a 1911, os salários decresceram. No mesmo período, o preço dos alimentos aumentou dramaticamente (a média no aumento dos preços dos alimentos foi de 50% durante o período de 1900 a 1913). Este aumento nos preços, associado ao decréscimo no salário, levou a dificuldades na compra de alimentos.
A pelagra foi um problema de saúde pública relevante até 1940 quando 2.138 mortes foram relatadas.
Tabela 9 - Fatores levados em consideração nas características epidemiológicas observadas na doença - pelagra.
Sugestão de leitura: SCHUTZ, MG. Joseph Goldberger and pelagra. Am J Trop Med Hyg 1977; 26:1088- 92.
Referência: DeKruif P. Hunger fighters. New York: Harvourt, Brace & Co; 1928. p. 335-70.
Fonte:
Centers for Disease Control and Prevention CDC/EIS- Summer Course, 1992 Copyright 1999 da tradução em português: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
É autorizada a reprodução deste texto, desde que citada a fonte.