CONTEXTO
Fenômeno Metodológico “La Ninã e El Niño”
Denominações:
La Niña:
- Vem do espanhol feminino que significa “a menina”.
- Faz referência à Virgem Maria, associada à fertilidade e abundância de chuvas.
El Niño:
- Vem do espanhol masculino que significa “o menino”.
- Faz referência ao Menino Jesus, associado ao nascimento e novas promessas.
Origem:
Ambos os termos surgiram no Peru no século XVI.
Pescadores da costa peruana observaram que a pesca diminuía consideravelmente durante alguns anos, coincidindo com o Natal (tempo do nascimento de Jesus) e com a Epifania (tempo da visita dos Reis Magos ao Menino Jesus).
Associaram essa diminuição da pesca à influência divina.
Atualmente:
As denominações “La Niña” e “El Niño” são utilizadas para se referir às fases opostas da variabilidade climática natural no Oceano Pacífico tropical.
Apesar da origem religiosa, os termos são utilizados de forma científica para descrever esses eventos climáticos.
Resumo:
La Niña e El Niño são termos originados no Peru com base em observações da pesca e crenças religiosas.
Hoje, são utilizados para descrever as fases opostas da variabilidade climática no Pacífico tropical.
Expressão “Está chegando o clima?” neste contexto
A expressão “Está chegando o clima” pode ser interpretada de forma metafórica para descrever a iminência de mudanças significativas no clima global, especialmente quando consideramos os fenômenos El Niño e La Niña. Estes eventos atmosféricos, caracterizados por alterações na temperatura das águas oceânicas, têm um impacto profundo nas condições climáticas ao redor do mundo.
El Niño, que se refere ao aquecimento das águas do Oceano Pacífico, tende a provocar secas severas em algumas regiões e chuvas intensas em outras. Por outro lado, La Niña é marcada pelo resfriamento dessas águas, levando a padrões climáticos opostos, como aumento das chuvas em áreas tipicamente secas. Essas flutuações não só afetam a agricultura e a vida cotidiana das pessoas, mas também têm implicações significativas para a saúde pública, como no caso da proliferação do mosquito Aedes aegypti, vetor da dengue.
Durante períodos de El Niño, o aumento das temperaturas e a alteração dos padrões de chuva podem criar ambientes propícios para a reprodução dos mosquitos, aumentando o risco de surtos de dengue. Em contraste, La Niña pode levar a um aumento das chuvas, o que também pode contribuir para a formação de poças de água estagnada, locais ideais para a postura de ovos pelos mosquitos.
Portanto, quando dizemos “Está chegando o clima”, no contexto de El Niño e La Niña, estamos reconhecendo a aproximação de uma fase climática que pode ter consequências diretas na incidência da dengue, entre outros impactos ambientais e sociais. É um lembrete de que as mudanças climáticas são um fenômeno complexo, com efeitos que vão além do que podemos prever, afetando profundamente a saúde e o bem-estar das populações globais.
Os fenômenos El Niño e La Niña, apesar de serem mais conhecidos pelos seus impactos negativos, também possuem aspectos positivos que podem beneficiar diferentes regiões do mundo. Aqui estão alguns dos aspectos positivos:
El Niño:
Aumento das chuvas: Em regiões como a costa oeste da América do Sul, o El Niño pode trazer chuvas mais intensas, o que é benéfico para a agricultura em áreas que normalmente são áridas.
Temperaturas mais quentes: Pode resultar em invernos mais amenos em algumas regiões do planeta, o que reduz a necessidade de aquecimento e pode diminuir os custos de energia.
Benefícios para a pesca: Em algumas áreas, o aumento da temperatura da água pode levar a um aumento na disponibilidade de certas espécies de peixes, beneficiando a indústria pesqueira.
La Niña:
Redução de ciclones: Pode resultar em menos ciclones tropicais no Atlântico, o que é positivo para as regiões costeiras que são frequentemente afetadas por esses desastres naturais.
Melhora da qualidade do ar: Em algumas regiões, La Niña pode levar a condições climáticas que ajudam a dispersar poluentes, melhorando a qualidade do ar.
Benefícios agrícolas: Chuvas mais frequentes e intensas em certas regiões podem ser benéficas para a agricultura, especialmente em áreas que enfrentam seca durante outros períodos.
É importante notar que os efeitos positivos podem variar de acordo com a região e outros fatores ambientais e socioeconômicos. Além disso, o que pode ser positivo para uma região pode ter consequências negativas em outra. Por isso, é essencial uma gestão cuidadosa dos recursos e uma preparação adequada para mitigar os impactos adversos desses fenômenos climáticos.
Influência do clima na dengue
As mudanças climáticas têm o potencial de modificar a distribuição e as ações dos vetores que espalham doenças. Entre 2014 e 2016, o fenômeno El Niño foi associado a um incremento nos casos de peste no Colorado e no Novo México, de cólera na Tanzânia, e de dengue tanto no Brasil quanto no sudeste da Ásia. Um El Niño mais brando, ocorrido entre 2018 e 2019, contribuiu para intensificar alguns dos mais devastadores incêndios florestais já registrados na Austrália. No mesmo período de 2014 a 2016, períodos de seca e enchentes afetaram aproximadamente 60 milhões de pessoas globalmente, resultando em escassez de alimentos e desencadeando surtos significativos de Zika por toda a América do Sul. A conexão entre o El Niño e as mudanças climáticas sugere consequências preocupantes para o fardo global de doenças. Adicionalmente, os efeitos do El Niño são exacerbados pelas mudanças climáticas (Nusmila 2023).
Entre janeiro do ano 2000 a 20 de abril de 2024 foram registrados 28,4 milhões de casos prováveis de dengue, segundo dados públicos do DataSUS/Ministério da Saúde. Nestes 24 anos foram registrados 10 fenômenos do tipo El Niño e 9 La Niña. Do total de casos registrados, em anos com presença do El Niño foram 44% (12,5 milhões de casos), enquanto que nos anos da La Niña foram 35% (9,9 milhões de casos). Em relação aos óbitos, verifica-se que durante os períodos do El Niño a proporção sobe para 51%, indicando que os casos além de serem mais frequentes, são mais graves (Tabela 1).
Tabela 1. Proporção de casos prováveis e óbitos por dengue de 2000 a 20 de abril de 2024.
FENÔMENO | TOTAL DE CASOS | PERCENTUAL | TOTAL DE ÓBITOS | PERCENTUAL |
---|---|---|---|---|
El Niño | 12.531.944 | 44% | 7.720 | 51% |
La Niña | 9.978.255 | 35% | 4.546 | 30% |
Neutro | 5.925.365 | 21% | 2.812 | 19% |
TOTAL | 28.435.564 | 100% | 15.078 | 100% |
Os dados preliminares do primeiro trimestre de 2024 indicam um aumento alarmante de casos de dengue, superando em 1.165.676 casos o total registrado em 2015, que até então detinha o recorde na série histórica, resultando em uma diferença de 48,6%. Este pico coincide com o fenômeno El Niño, que já havia sido associado a um aumento nos casos de dengue no ano anterior e no próprio ano de 2015. Após esses períodos de alta, observou-se uma tendência de queda significativa, com os números caindo para aproximadamente 500 mil casos em 2017 e 2018. Contudo, foi durante esse intervalo que outra arbovirose, a Febre Amarela, emergiu como uma grave ameaça à saúde pública. A Febre Amarela, prevenível por vacinação desde 1942, ressalta a importância da imunização na luta contra essas doenças (Figura 1).
Figura 1. Distribuição temporal de casos prováveis de dengue e crescimento proporcional entre os anos 2000 a 2024. Brasil, atualização até 20 de abril de 2024.
Em relação aos casos graves, o ano de 2008 destoou quanto ao número de casos graves de dengue confirmados. Por outro lado, os casos prováveis de janeiro a 20 de março são 47.627 e do ano de 2008, quando foi registrada a maior quantidade de casos graves com 24.829, a diferença percentual é de 91.8% (Figura 3).
Figura 2. Distribuição temporal de casos de dengue com complicações, alarme e gravidade entre os anos 2000 a 2024. Brasil, atualização até 20 de abril de 2024.
Os óbitos confirmados por dengue em 2024 já estabelecem um novo recorde na série histórica do país. Em apenas 3 meses e 26 dias do ano, já foram registrados 1.657 óbitos confirmados e há ainda mais de dois mil casos sob investigação, que possivelmente elevarão ainda mais esse número. Para ilustrar a gravidade da situação, podemos comparar com anos anteriores: em 2023, o total de óbitos foi de 1.088, o que significa que a diferença percentual atual é de 34%. Além disso, em 2022, foram registrados 1.051 óbitos, e em 2015, ano também marcado pelo El Niño, houve 1.009 óbitos. Esses números refletem não apenas a severidade do surto atual, mas também a necessidade urgente de medidas eficazes de controle e prevenção da dengue (Figura 3).
Figura 3. Distribuição temporal de óbitos por dengue entre os anos 2000 a 2024. Brasil, atualização até 20 de abril de 2024.
Na presente análise, procedeu-se ao cálculo da taxa de mortalidade, que corresponde ao número de óbitos por dengue em relação a cada milhão de habitantes, com base na população censitária estimada para cada período no Brasil. Em 2024, observa-se a taxa mais elevada já registrada na série histórica, com 8,2 mortes por dengue para cada 1 milhão de habitantes. Este indicador reflete a severidade do impacto da doença sobre a população em um determinado tempo e local.
Por outro lado, a letalidade, que é a proporção de casos de dengue que resultam em morte em relação ao número total de casos de dengue, demonstra uma maior flutuação ao longo do tempo. Este indicador é influenciado por diversos fatores, incluindo as mudanças nas definições de casos ao longo dos anos, a disponibilidade e a precisão dos testes diagnósticos, bem como as características específicas de cada epidemia, como a virulência do vírus e a vulnerabilidade da população afetada. A letalidade é um indicador crucial para avaliar a eficácia das intervenções de saúde pública e a capacidade do sistema de saúde em gerenciar e tratar a doença de forma eficiente (Figura 4).
Figura 4. Distribuição temporal da taxa de mortalidade e letalidade por dengue em relação aos casos graves, com sinais de alarme e com complicações entre os anos 2000 a 2024. Brasil, atualização até 20 de abril de 2024.
Segundo os dados do Painel de Monitoramento da Vigilância Genômica da Dengue no Brasil, em 2024 foram processados 451 genomas, sendo 143 DENV1, 298 DENV2, 9 DENV3 e 2 DENV4 (Figuras 5-9)
Figura 5. Proporção de sorotipos sequenciados e genótipos identificados. Brasil, Ministério da Saúde.
Figura 6. Proporção de genótipos por sorotipos. Brasil, Ministério da Saúde.
Figura 7. Proporção de execução por laboratório executor. Brasil, Ministério da Saúde.
Figura 8. Mapa de distribuição de genótipos. Brasil, Ministério da Saúde.
Figura 9. Mapa de calor com a distribuição dos vírus dengue. Brasil, Ministério da Saúde.
Considerações epidemiológicas
Anualmente, os recorrentes surtos de dengue expõem a crônica despreparação das autoridades brasileiras, apesar dos esforços declarados em discursos políticos. Os resultados continuam a demonstrar a ineficácia das medidas adotadas. Renomados profissionais de saúde brasileiros têm apontado o dedo tanto para as instâncias governamentais locais quanto para as autoridades Estaduais e Ministério da Saúde como responsáveis pela persistente crise da dengue.
As responsabilidades sobre a vigilância e atenção à saúde são compartilhadas entre as três esferas de gestão do SUS e aqueles que responsabilizam apenas uma das partes, ou seja, Municípios, Estados, Distrito Federal e Ministério da Saúde estão equivocados e precisam rever seus conceitos.
As legislações que especificam a proporção de responsabilidade da União, Estados e Municípios em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) são:
Constituição Federal de 1988: Estabelece as bases do SUS e determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990: Regulamenta, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado.
Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012: Define os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde.
Resolução nº 588, de 12 de julho de 2018: institui a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS)
Essas legislações delineiam o modelo de financiamento e gestão do SUS, garantindo a distribuição de competências e responsabilidades entre os diferentes entes federativos para promover a saúde pública no Brasil.
Eles criticam, ainda, a fragmentação dos dados providos pelo Ministério da Saúde, que falham em compor um panorama fidedigno da situação. Isso suscita uma indagação pertinente: por que um sistema de saúde, que já enfrenta esse surto anual há mais de quatro décadas, ainda se mostra incapaz de contê-lo? As lições de detecção e resposta às emergências em saúde pública, supostamente aprendidas durante os grandes eventos e pandemias de Influenza A/H1N1, Zika vírus e Covid-19, parecem não ter sido assimiladas. Não é mesmo?!
A previsão para o início do fenômeno La Niña em 2024 indica que após um período de neutralidade climática, há uma probabilidade de 62% de que o La Niña se estabeleça entre junho e agosto deste ano. Esse período de transição do El Niño para La Niña é uma fase crítica, pois pode trazer muitos extremos climáticos, com risco de chuva extrema, vendavais, granizo, e possibilidade de massas de ar polar intensas. Portanto, é esperado que o La Niña comece a influenciar o clima global no segundo semestre de 2024. Portanto, sempre há tempo para se preparar para a mudança. Novas epidemias de dengue vão acontecer e começam em novembro de cada ano, seja com o El Niño, com a La Niña ou com períodos de neutralidade climática.